sapatos cor-de-rosa



Já não tinha mais lágrimas, apenas um vazio com eco semelhante ao som do desfibrilhador que lhe salvara a vida. Nesse momento, julgara-se morto, porque mesmo com os olhos abertos tudo parecia escuro e sombrio. Apercebeu-se de que estava vivo pouco tempo depois, quando sentiu o coração a bater e ouviu a aflição dos seus pais. Foi diagnosticado com traumatismo ocular-
Culpava-se todos os duas do sucedido e esperava que tudo aquilo tudo não passasse de um mau sonho. Quando acordava essas esperanças sumiam e ele desejava morrer.
Todos os dias os seus pais ligavam a aparelhagem e reproduziam músicas de compositores como Adalph Adam, Prokofiev, Léo Delibes, entre outros, aconselhados pela psiquiatra que o rapaz consultava. A sua predilecta era "o pássaro de fogo", de Stravisky. Sempre fora gozado pela sua paixão de dançar ballet clássico, mas aquela música deixava-o relaxado, e ele esquecia todos os problemas que o incomodavam quando a dançava.
O acidente dera-se quando se dirigia para o conservatório, e ele intrepertava isso como um sinal de que o seu futuro não passava pelo que sempre ambicionara. Não se imaginava a fazer mais nada. A dança era a sua única paixão. Talvez não fosse a única...

*

Ela visitava-o todos os dias desde o acidente. Nas primeiras vezes, ele tivera dificuldade em aceitar a sua presença. Sentia vergonha, e, acima de tudo, inveja. Sabia que não era justo sentir inveja dela, que sempre fizera tudo por ele, mas não conseguia evitá-lo.

*

Passou um ano e ele voltara à escola há uns meses. Já se conformara com a sua vida e os seus pais trataram de o readaptar às suas novas condições. Estava mais que preparado. 
Ela assegurava-se de que todos o tratavam bem, mas a verdade é que atrás da preocupação se escondia um sentimento demasiado forte, que ela não conseguiria aguentar por muito mais tempo. 
Um dia, decidiu levá-lo ao ginásio onde costumavam passar tardes a ensaiar, ouvir música clássica e preparar-se para os espectáculos. Nenhum deles podia ter pedido melhor par, eram absolutamente perfeitos um para o outro.
A medo, ele entrou e relembrou o cheiro a madeira, suor, purpurinas e perfume de rapariga. Os seus sentidos tinham melhorado significativamente, de maneira que já se sentia confiante o suficiente para avançar sozinho. 
Ela pediu-lhe que tentassem dançar. Ele negou, e ela insistiu. Ele não resistiu, tinha de experimentar. No princípio sentia-se desconfortável, mas ela guiou-o o melhor que pôde, de modo que no final do dia ele não queria abandonar o único local onde se sentira realmente bem no último ano.
Todos os dias dançavam juntos. A cumplicidade entre os dois era enorme. Para o bem e para o mal, estavam ali um para o outro...
Depois de um treino extenuante para ambos, ela pediu-lhe que fizesse as audições para o conservatório com ela. Após uma longa discussão, ele acabou por ceder. Não tinha nada a perder e sabia-o.
Ele apercebeu-se de que ela se interessava realmente por ele, e ele amava-a desde a primeira vez que dançaram juntos. Nunca tivera coragem de lhe confessar tamanha paixão e decidiu fazê-lo no dia da audição. 
Treinaram o máximo que puderam, e o dia finalmente chegara. Dedicaram-se de alma e coração à dança, não podiam falhar agora. Ela calçava os seus sapatos cor-de-rosa, enquanto tentava disfarçar a preocupação da sua voz. Ele sentiu e pensara em desistir, mas tinha de fazer isto por ela.
Quando o júri lhes disse que passaram, foi o melhor dia das suas vidas. Tinham realizado os seus sonhos e o mérito devia-se apenas aos dois. 
Ele soube que era com o coração que vira claramente o que era invisível aos seus olhos. Era com o coração que ele sentira o que realmente interessava. Dirigiu-se a ela apressado. Os seus pensamentos deixaram de ter lugar e as emoções começaram a falar. Mas ela adiantara-se: "Acho que mereces todos os dias de felicidade". E beijaram-se até perder o fôlego.

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